De vidas e clubes

É, eu vou falar de novo de celulares. Mas dessa vez vou falar de uma família específica de celulares: os que funcionam por rádio.
Você já deve ter visto muitos por aí. Do ponto de vista visual, é fácil reconhecer: o usuário geralmente usa o celular em posição perpendicular ao rosto, alternando entre a boca e a orelha. Nos outros tipos de celular, geralmente o aparelho fica parado, colado ao rosto. É fácil perceber a diferença.
Mas o aspecto mais evidente da diferença entre os dois tipos de celulares é o sonoro: os que funcionam por rádio geralmente são usados no viva-voz, com uma campainha que toca cada vez que vai haver alguma alternância na vez de quem fala. Em suma, uma barulheira, com gente falando de lá e de cá e as campainhas marcando cada mudança de falante.
Eu sempre acho desagradável ouvir conversas alheias quando as pessoas falam em público nos celulares. No caso desses, o constrangimento é ainda maior, porque a gente ouve os dois lados da conversa, graças ao viva-voz. Privacidade zero.
Acho que por essas e outras fica fácil a gente entender por que o slogan da marca mais conhecida desse sistema de telefonia (será que há outras?) é "Essa é minha vida, esse é meu clube". Uma tal exposição pública da conversa faz com que todos saibam como é sua vida. E o alcance de sua conversa em viva-voz se amplia até que todos à sua volta passam a fazer parte dela: seu clube. 
Já deu pra sentir que eu realmente não gosto desses celulares, não é? Ou melhor, não gosto da maneira como eles são usados pelas pessoas, transformando toda conversa privada em pública. E colaborando pra aumentar ainda mais a poluição sonora do nosso já tão barulhento mundo.
Pra terminar, mais uma confissão: sempre que ouço esse slogan que citei antes, lembro-me não das inúmeras paródias que há por aí, mas sim de um maravilhoso e terrível poema de José Paulo Paes, escrito muito antes do advento dos celulares por rádio, chamado "Declaração de bens". Deixo então com ele a palavra final sobre essa história de vidas e clubes:

DECLARAÇÃO DE BENS (José Paulo Paes)

meu deus
minha pátria
minha família

minha casa
meu clube
meu carro

minha mulher
minha escova de dentes
meus calos

minha vida
meu câncer
meus vermes



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