Minha avó era blogueira?

Hoje o post não é pra reclamar de nada... Será que estou doente?
Mas falando sério, quero contar hoje a história da minha avó materna, que, durante muitos anos manteve um diário. Embora não tivesse nem concluído o terceiro ano primário, minha avó manteve-se fiel à narração do seu cotidiano.
O diário dela não era muito secreto, porque não dava pra imaginar que uma mãe de 9 filhos tivesse assim tanta privacidade para escrever. E quando chegaram os netos, então (entre eles esta xereta que vos escreve), já ficou sabido por muita gente que, lá no meio da bagunça que havia embaixo da escrivaninha dela, havia 3 cadernos com as reflexões da vó.
No dia em que ela morreu (eu estava na faculdade), antes de ir ao velório, eu passei pela casa dela. Fui à escrivaninha, encontrei os cadernos e os escondi na minha mala. Fiquei com medo que algum apressado considerasse aquilo como papel velho e jogasse tudo fora! Deixei um recado, na hora de ir embora, dizendo que os cadernos estavam comigo, que me auto-nomeara guardiã dos mesmos. Quem quisesse ler, era só me pedir, mas a guarda era minha.
Li e reli tantas vezes aquelas páginas que sei muitas passagens de cor.
Vou transcrever algumas, para compartilhar com vocês um pouco das ideias da minha avó blogueira avant la lettre.
Uma anotação típica era assim (ortografia corrigida e atualizada):

22 de maio de 1951, terça-feira
Levantei-me como sempre às 6 horas. Depois do serviço da manhã, fiz pão doce, broa doce, bolo. Para vender, como todos os dias, sorvete. Doces para prendas na quermesse. À noite tivemos visita, depois que saíram ainda fui costurar. Depois de ouvirmos um pouco de rádio fomos dormir, pois estava um frio horrível.

Dá pra perceber por esse trecho como era seu cotidiano de mulher que trabalhava muito!

Olha o dia 10 de julho, do mesmo ano:

Levantei às 6 horas, engarrafamos hoje o vinho de laranjas (...). Depois do jantar eu preparei alho para tempero e fermento para pão e sonhos, e fizemos uma tachada de doce de abóbora. às 23 horas fomos dormir.

A gente fica cansada só de ler, né?
Tem também algumas associações malucas, como a do dia 29 de agosto de 1951:

Plantei hoje violetas dobradas, mandei fazer cuecas para E. [um dos filhos]. Esta noite choveu e trovejou.

Em outras passagens, a gente vê cenas da cidade do interior em que ela viveu:

Dia 8 de setembro de 1951, sábado
Foram todos à missa. Eu não fui, pois tinha muito serviço de manhã. (...) Passamos hoje um grande desgosto: ao passar pela nossa rua a comitiva do Sr. Ademar de Barros, um dos automóveis matou o nosso cãozinho Gip. Foi uma choradeira, um desespero para todos. Passamos um dia de tristezas e contrariedades. Não fomos à procissão nem assistimos aos fogos.

Minha passagem favorita é a do dia 1 de outubro de 1959, uma quinta-feira:

Hoje, faltando dez minutos para as onze, nasceu Ana Maria, primeira filha da A.

É isso mesmo, o meu nascimento está registradinho lá. No dia seguinte, consta que ela e meu avô foram, com alguns parentes, me visitar no hospital (nasci numa cidade vizinha). O triste é que vem depois: no outro dia, meu avô morreu. Ele estava já adoentado, mas a morte foi meio repentina. E ela narra, certamente a posteriori, como foi o momento em que ele morreu. Ainda registra, no final da narrativa: Dia de Santa Terezinha do Menino Jesus (uma das suas santas preferidas), como se estivesse se sentindo traída pela santa a quem relata no diário ter feito muitas novenas nos anos anteriores.
Depois disso, ela quase não registra mais nada, apenas um ou outro episódio que rompe com o cotidiano, como o casamento de algum filho, o nascimento de algum neto. Nessas últimas páginas, o que mais tem é transcrição de poemas que ela lia e dos quais gostava, muitas vezes com alguma intromissão dela no texto. Ou poemas escritos por ela mesma, ao final dos quais escrevia "versos de minha lavra".
Todo mundo na família acha que a gente é meio parecida. Quem me dera! Mas acho que, se minha avó vivesse hoje, certamente seria mesmo blogueira. Então, pra terminar esse post, vou colocar uma foto dela sentadinha justamente naquela escrivaninha onde estavam escondidos os diários. E depois uma foto nossa, pra vocês verem se a gente se parece mesmo!




Comentários

  1. Que post lindo!
    Meu maior orgulho é quando dizem que me pareço com a minha avó, que desde que eu aprendi a falar, mudou de nome: de Antônia ou vó, virou Mãe Velha. Porque eu tinha a Mãe Nova, que me colocou no mundo, e ela era a minha Mãe Velha.
    E você se parece mesmo com sua avó.
    Engraçado na foto é que até a expressão e o entortar das cabeças ficou igual.
    =)

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  2. Ana, adorei o post!
    beijos
    Ana Carolina
    (Carolina por causa dela!)

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  3. Ana, que post maravilhoso! Adoro essas inspirações do passado!

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  4. Imaginei um filme. Muito bom. Deu até uma invejinha de você ter uma vó "blogueira". rsrs

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  5. Obrigada, pessoal! A receptividade tá tão boa que acho que vou parar de escrever só reclamação no blog... ;-)

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  6. Ana Maria
    Essa foto é demais!Um clone mesmo!Impressiona.
    Lí e reli os diários, imaginando a cena em cada passagem. Emocionante,
    Escaneia uma página e manda pra gente guardar a letra dela.
    Dou muita risada com as "rabugices" que você escreve e sou a favor de mais artigos, além das rabugices também, é claro!
    beijos
    Marilúcia

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  7. Oi, Ana! Adorei o post. Já tinha adorado quando a Carmem falou "sua vó era blogueira", puta sacada!!!!
    Concordo com a Malu aí em cima, posta mais!!!!
    beijao grande.

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  8. Ana, tem a história paralela ao diário, no seu nascimento minha mãe conta que foi com eles num "carro de praça" para a visita, acho que eu e minha irmã fomos também.

    A bolsa que ela esqueceu no carro depois de uma viagem a Santos, ela nunca recuperou. Minha mãe disse que o conteúdo era: um terço de filigrana, uma carta da mãe dela, a faixa do SCJ, um estojo de pó dourado que era da minha mãe...

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  9. Olha que história legal, Clara! Segundo o diário, você foi mesmo me visitar no hospital, com a comitiva. Mas da bolsa ela não fala nada, nesse dia. A perda foi nessa mesma viagem? Se lembrar de mais detalhes, me conta!

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  10. não foi no mesmo dia que ela perdeu a bolsa, agora eu não me lembro o dia certo, mas foi em julho uma viagem para Santos. Minha mãe contou que ela esqueceu, ficou emocionada, pois quando chegou as três netas estavam esperando por ela e fizeram festa com a chegada deles...

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  11. Tá craque no diário da vó, hem? É isso mesmo, eu também a passagem, mas não sabia dessa história que a sua mãe contou!

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  12. Ana!
    Sobre Carolina falei pouco do muito que poderia ter falado, mas o fiz com imenso carinho! No contato íntimo que tive com os diários de sua avó pude realmente observar e concordo com você: ela realmente poderia ter sido uma blogueira. E da mesma forma que se vê a semelhança física entre você e ela também se vê a semelhança de escrita: ela escrevia seus diários e você escreve em seu blog, ambas públicas e transgressoras. Tenho certeza de que, trocados os papéis, você manteria um diário íntimo para falar de seus dias e ela teria um blog, aqui na infovia, para falar de tudo aquilo do qual não falou e que por algum motivo ela tivesse se silenciado. Isso porque vocês pertencem ao grupo das mulheres que não se calam, mesmo que suas vozes, muitas vezes, atravessem o tempo para que seja ouvido no devir. Obrigada por tudo!! Grande beijo!

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  13. Que coincidência, Ana!
    Eu sempre digo isso do meu avô! Se ele fosse vivo hoje, ele certamente seria blogueiro. Ele costumava fazer anotações em todas as suas fotos e escreveu quase um livro sobre a primeira viagem dele à europa depois que ele imigrou ao Brasil (ele era português).
    Meus familiares sempre falam que eu sou muito parecido com ele. E isso me orgulha muito!
    Ele é, sem dúvida, minha maior inspiração. Assim como a sua vó parece ser a sua.
    Uma coisa é certa: sua rabugice é adorável! Mas as suas falas não rabugentas também são muito boas de se ler.
    Abção,
    Tiago - Rotas Capixabas

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  14. Querida tia venha para socorro passar o carnaval com seu sobrinho favorito.

    assinado:o sobrinho favorito.

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