Civilização e barbárie.

Dia desses vivi uma situação que me fez pensar. Começo pelo relato dos acontecimentos.
Era dia de jogo do Brasil, nessa primeira fase da Copa. Eu tinha ido almoçar e estava voltando pra casa, um pouco antes do horário do início do jogo. Em plena Avenida Paulista, havia um vendedor de vuvuzelas, como era de se esperar.
Ele trazia, no entanto, um instrumento que eu ainda não tinha visto (embora já tivesse ouvido falar dele): uma vuvuzela dupla, em que, a partir de um só bocal, distribui-se o sopro por duas cornetas.
Eu me aproximei do vendedor e perguntei como aquilo funcionava, porque queria ter uma dimensão do tamanho do barulho e ele, todo feliz, fez uma demonstração para mim, certo de que tinha ganhado uma freguesa...
Eu ouvi aquilo e disse pra ele minha opinião sobre o aparato: "Inferno em dose dupla!"
O vendedor imediatamente se contrapôs e disse: "Nada disso: quem quer sossego fica em casa: entra, fecha a porta e pronto!"
Eu fui andando e pensando nessa frase.
Em primeiro lugar, esse sossego do lar só seria possível se todos vivêssemos em casas com isolamento acústico! Mas não vou nem usar esse argumento, porque o problema maior, pra mim, nem era esse. Ainda que esse refúgio fosse possível, acredito que há, na frase do vendedor, uma inversão do conceito de público e privado.
É como se, ao sair de minha casa para um espaço público como a rua, eu aceitasse um pacto de barbárie e tivesse, portanto, de me sujeitar a conviver com pessoas num ambiente em que tudo é permitido, em que vale tudo.
Segundo meu ponto de vista, segundo tudo o que aprendi em casa e na escola, no ambiente privado de minha casa é que eu poderia viver, agir, falar como eu quero. No ambiente público, tenho de lembrar que se trata de um espaço de convivência e, portanto, limitado pelos direitos dos que compartilham esse espaço comigo.
A frase do vendedor me fez enxergar uma razão para todas aquelas loucuras que vemos em nosso dia a dia, em qualquer lugar de convivência social: todos agem conforme sua vontade, sem a menor consideração pelos demais. Conversas em voz alta, celulares tocando música sem fone de ouvido, som alto nos carros, buzinas, lixo, sujeira, agressões, vuvuzelas: tudo está permitido no espaço público. Quem deseja algo diferente disso deve ficar em casa. No espaço público consente-se a barbárie. Quem quer civilização, fique em casa.
Alguém me explica o que foi que aconteceu com o mundo?

Comentários

  1. O que aconteceu com o mundo? Boa pergunta! Creio que a falta de respeito é a grande vilã. Atualmente, depois da saída às ruas, tenho a impressão de que voltamos pra casa muito mais cansados.Gente, barulho e poluição de todo tipo e em maior quantidade. O espaço é que vem diminuindo. Mesmo as cidadezinhas do interior já não são mais as mesmas!

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  2. Como em casa quase não ensinam mais o que é respeito, muito menos pelos "outros", vale tudo diante de desconhecidos. E assim, conforme a rua cada vez mais passa a ser um espaço dividido com desconhecidos, vira território de ninguém e deixa de ser um espaço coletivo, que depende de colaboração e respeito. Parece que nas ruas o anonimato protege as pessoas e isso as libera para agir sem tantos limites. Tristeza.

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  3. Ana, querida,

    Ainda não conheci a vuvuzela dupla, e nem quero! Já tive problemas suficientes com a monovuvuzela.

    Bjos,
    Andreia.

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