Tempo tempo tempo

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Eu me lembro quando foi a primeira vez, há mais ou menos dez anos. Eu conversava com uma ex-aluna, que havia se tornado amiga, e que sempre foi uma pessoa de muita compaixão com os animais. Em sua casa sempre havia muitos bichinhos de rua salvos por ela, principalmente cachorros.

Estávamos na véspera do referendo sobre o desarmamento e eu, de modo ingênuo, achei que uma garota como aquela, ex-estudante de Letras numa universidade pública, homossexual e protetora de animais obviamente seria a favor do desarmamento. Me enganei redondamente. Ela se pôs a argumentar que todos tínhamos o direito de portar uma arma para defesa pessoal.

Eu fiquei chocada, pois até ali eu meio que acreditava que havia uma espécie de conjunto de referências e valores comuns a todas as pessoas que eram minhas amigas.

No começo achei que tivesse entendido mal e pedi que ela me explicasse melhor seu ponto de vista. Só piorou. Depois ainda tentei discutir um pouco, achando que poderia, com um pouco de argumentos pacifistas, levá-la a rever sua posição. Nada. Por fim eu desisti e, para mantermos uma boa relação, nunca mais tocamos no assunto.

Foi a primeira vez que eu percebi que aquele conjunto de valores da minha geração não eram mais uma unanimidade. Até então, eu sempre tinha dado como certo que todos à minha volta eram pacifistas, a favor do desarmamento, da democracia, da igualdade entre as pessoas, do feminismo, da ecologia, contra a ganância, o racismo, a homofobia... Enfim, todo o conjunto das ideias que floresceram naqueles anos loucos do final da década de 60 e início da década de 70.

De lá pra cá, tenho a sensação de que as coisas pioraram. Às vezes me sinto muito velha, quando percebo que certos pontos de vista que para mim são abjetos voltaram a circular livremente, em nome de uma assim chamada liberdade de expressão.  Pareço a minha avó, sempre dizendo que o mundo estava perdido, que no tempo dela as coisas eram diferentes...

Mas a verdade é que, quando eu era jovem, ainda que alguém lá no seu íntimo acalentasse, por exemplo, ideias racistas, tinha vergonha de expô-las, ao menos nos círculos que eu frequentava. Fico triste de ver pessoas defendendo abertamente valores que para mim soam tão errados.

Não se trata de dificuldade de conviver com a diferença, sei lidar razoavelmente bem com gente que vê a vida de outra forma. O que não consigo entender é que haja tanta desfaçatez certeza na afirmação e divulgação de questões que eu considerava superadas, por óbvias. Quem, em sã consciência, defenderia, nos anos 70 e no meu grupo social, que as pessoas pudessem andar armadas? Quem teria a coragem de falar em favor da ditadura?

Para concluir com uma nota triste, esses dias vi um carro na rua que trazia adesivos favoráveis ao porte de armas. E ainda em inglês... Um deles dizia, sobre uma bandeira norte-americana, "God, guns and guts keep America free" (numa tradução livre, algo como "Deus, armas e colhões mantêm a América livre). O outro era um adesivo que imitava aqueles das famílias felizes. Tinha como legenda "My family". Mas os membros dessa estranha família eram armas de vários tamanhos.

Os tempos mudaram, e eu fico triste ao pensar que foi nessa direção. Mas enfim, são apenas reflexões de uma quase anciã que tem saudade dos velhos tempos da sua juventude.

 

PS - Enquanto escrevia este post, soube que o Estatuto do Desarmamento volta à discussão, para torná-lo mais flexível... De fato, tristes tempos.

Comentários

  1. Tristes e difíceis tempos, esses...

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  2. Vim ler seu post atraída pelo título no twitter, rabugices e mais rabugices. E tenho a informar: você está muito boazinha, comparado comigo... :(

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  3. Rabugices mas escritas na chave do eufemismo, porque se eu fosse destilar toda a frustração que sinto com esse estado de coisas, minha amiga... ;-)

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